quarta-feira, 20 de março de 2019

Artigos de Revistas - Reportagem Com Dubladores em 1976

Reportagem de dublagem feita na Herbert Richers, edição do dia 06/06/1976.


Com Suas Mil-e-Uma Vozes, os
Dubladores
ganham a vida falando pelos outros
e os outros é que levam a fama.


Já imaginaram um Kojak barbado e com muito cabelo? Ou um Harry O louro, que ao invés de praia deserta passa o dia inteiro dentro de um estúdio escuro? E que tal uma Mary Tyler Moore míope e falando pouco e pausado? Quem seria capaz de acreditar que Elizabeth Taylor ganha tão pouco que não pode nem sonhar com jóias de camelôs? O que aparentemente parece brincadeira vira coisa séria quando se entra num estúdio de dublagem: as vozes desses heróis da tevê pertencem, na verdade, a pessoas muito simples, em geral ex-radioatores, que levam uma vida sem nada em comum com os seus personagens.

Eles ganham por hora (e só conseguiram isso em 1969), dependem de uma escala de horários e recebem o script dentro da sala de dublagem. Sua profissão não é regulamentada, pois todos são atores (o que, no Brasil, significa o cargo de comerciário, na Carteira Profissional). Mas têm muitas coisas em comum: gostar do que fazem, é uma delas. E todos sonham com o dia 15 de julho. (quando haverá aumento de salários.) Mas as surpresas não param por ai. O Filme a que você assiste calmamente de sua poltrona favorita leva, em média, cinco horas para ser dublado, através de um processo que começa na divisão da película em loops (anéis, para os paulistas), passa por um estúdio de gravação e termina na sala de montagem, onde um funcionário paciente controla se o bocejo de um ator não está coincidindo com o barulho do mar ou com uma fala de mulher. Que explica o processo é Luiz Manoel, que começou na Rádio Nacional há 20 anos e já dublou, para a tevê, Robin, o inseparável companheiro de Batman, apesar de preferir dublar desenhos animados (ele já foi o Mickey Mouse e o Catatau). Ele é diretor de dublagem do Estúdio Herbert Richers, no Rio.

"Recebemos uma cópia de trabalho das distribuidoras, com a tradução. Fazemos uma marcação no script e dividimos o filme em loops (uma hora de filme representa mais ou menos 100 loops). O diretor de dublagem daquele filme - ou da série - escala as vozes mais apropriadas a cada personagem e faz um esquema de trabalho. Por exemplo: você entra às oito horas e sai às 11 e meia; você entra às 11 e sai às duas etc."

Atualmente um ator ganha 84 cruzeiros pela primeira hora de dublagem e 61 pelas seguintes. Quando se trata de um personagem fixo, ganha um pouquinho mais: 111 cruzeiros e 84 cruzeiros respectivamente. A partir do dia 15 de julho serão 115 cruzeiros para a primeira hora e 84 para as seguintes, em personagens comuns, e 154 e 115 para os fixos. Todo dublador é ator, mais nem todo ator pode ser dublador.

"Muito ator consagrado não conseguiu se adaptar ao trabalho de dublador", explica Luiz Manoel, destacando duas qualidades fundamentais para um bom dublador: "Ele deve, em poucos segundos, sincronizar sua voz com o movimento labial do ator, e dramatizar sua fala."

Na sala de dublagem, à prova de som, ficam o diretor e os dubladores daquela série de loops que, com um fone de ouvido, acompanham a fala do personagem e repetem o script, enquanto a imagem é projetada numa tela á sua frente.

"Hoje, o processo de dublagem já está bastante aperfeiçoado" um filme como Kojak é dublado em cinco horas, e um longa-metragem em 10 ou 12 horas. Há sete anos - quando a remuneração era por loop e o ator tinha que ficar o dia todo à disposição da dubladora, o processo era bem mais demorado e um longa-metragem levava dois ou três dias para ficar pronto. O Julgamento de Nuremberg por exemplo levou duas semanas."

O efeitos sonoros - barulho do mar, tiros, música etc. - vêm numa fita magnética à parte, a chamada banda internacional (O Rin-Tin-Tin nunca precisou de dublador). Se essa fita não vier, o contra-regra do estúdio entra em ação.É comum a mesma pessoa dublar duas vozes diferentes num mesmo filme. (Um filme com 80 personagens pode ser dublado com 60 atores). "Mas só em papéis menores - justifica Luiz Manoel. O público reconhece. Além disso, há pessoas com vozes muito marcantes."

Como, por exemplo a Ida Gomes, que com sua voz de "madrasta da Branca de Neve", faz sempre o papel de mulher má, nos filmes de Betty Davis e Joan Crawford.

Luís Motta, aliás, o Tenente Kojak, ia causando, sem querer, uma grande decepção a seus fiéis telespectadores: É que, de repente, a voz do másculo e dinâmico (e, dizem charmoso) detetive começou a dar ordens com uma voz arrastada, de caipira, sem a entonação de costume. Os mais distraídos (que vêem tevê lendo o jornal) pensaram que o filme tinha saído do ar; os mais atentos logo identificaram uma voz diferente saindo da boca do ator Telly Savalas e, na semana seguinte, desligaram a tevê.Explica-se: Luís Motta desistira de dublar o detetive careca, com exclusividade para a TV Globo, sem nada em troca. E entrou um outro dublador no ar - o que não agradou aos espectadores. A pressão do público - que nunca se interessa por conhecer as vozes de seus ídolos - obrigou a Globo, a gravadora e Luís Motta a um acordo de cavalheiros - como seria de se esperar num verdade Kojak. Luís Motta voltou e a série recuperou sua audiência. "Acho Kojak simpático - diz Luís - oferecendo muitas possibilidades de se criar em cima.Faço muitas piadas e tenho a voz parecida com a dele, até mesmo quando canto. Acho que foi por isso que me escolheram." Mas ele faz questão de dizer que não vive como dublador. E que, nessa atividade, já gravou, antes, vozes tão diversas quanto Mr. Magoo (do desenho animado; Jim Backus, no original); Lawrence Olivier (em Otelo), Orson Welles e Peter Ustinov. Como ator, já trabalhou nas novelas A Ponte dos Suspiros, O Verão Vermelho, já fez teatro e teve recentemente sua primeira experiência em cinema, no ainda inédito Xica da Silva, de Carlos Diegues. "O que acho injusto é o nome do dublador não sair no créditos do filme."

André Filho (o Kwai-Chan Caine da série Kung Fu), aos 30 anos, já pode se considerar um veterano. Com 16, ele foi à casa de Paulo Porto pedir uma vaga de dublador de filmes para televisão. Só precisou falar. Dai em diante, foi locutor de rádio, disc-jóquei, fez comerciais e andou pintando até em novelas (Escalada e Vejo a Lua no Céu).

Mas seu forte mesmo é a dublagem. E vai por ai emprestando sua voz Alain Delon, Robert Redford, Sammy Davis Jr., Steve McGarret (Danny, de Hawaii 5-0), Lee Major (o Steve Austin, do Homem de Seis Milhões de Dólares, e o Corredor X, do desenho Speed Racer, isso só pra falar nos atuais.
E, como nada acontece por acaso, ele precisou mostrar que era o melhor, para conseguir dublar David Carradine no Kung Fu. O papel tinha sido dele no primeiro filme, mas, quando a série ia ser lançada, convidaram outro. Não deu certo. Foi chamado um terceiro, que também não agradou. O jeito foi buscá-lo. E André garantiu o sucesso.

Em sua opinião, o maior problema dos dubladores é a falta de regulamentação da profissão, o que os deixa sem nenhum amparo legal. Se um deles falta a uma gravação, é imediatamente substituído.
"O dublador é mais que um simples instrumento de laboratório, é um ator. E deve ser tratado como tal."

Diana Morel começou sua vida artística com 15 anos. Como dubladora, está entre as pioneiras, tendo começado nos estúdios da Agif - a primeira empresa do ramo a se instalar no Brasil. Angie Dickinson, de Police Woman, é a sua dublagem do momento.Filme de muita ação, a heroína, muitas vezes, se encontra em situações de perigo, obrigando Diana Morel a um trabalho intensivo para acompanhar todas as nuances da fala da atriz.

Ela também criou a Mulher Maravilha, participa de outros papéis menores do seriado Kojak e O Homem de Seis Milhões de Dólares. Mas considera que muita coisa melhorou para os que se dedicam ao trabalho de dublagem:

"Conseguimos o salário-hora, o contrato coletivo, definindo um teto mínimo salarial. No entanto, a luta não terminou. Existem problemas a resolver, como o trabalho de pé, sem luz, e sem renovação de ar, durante 10 ou mais horas."

Diana é carioca, fez teatro com Maria Della Costa, Paulo Autran e Tônia Carrero. No cinema, fez nove filmes e foi uma atriz consagrada na tevê em programas cômicos e musicais da antiga TV Rio e atualmente participa eventualmente de novelas. Como dubladora, faz Jane Russel, Joan Crawford, Jeanne Moreau, entre outras. Não conhece Angie Dickinson pessoalmente, mais considera a atriz uma mulher formidável: "Mesmo como policial, o seu charme é incrível."

Nota: Quando Diana disse "Agif", respondendo a pergunta de onde começou a dublar para o entrevistador, na verdade quis dizer "A ZIV" e ele entendeu "Agif", e concluiu que era tudo junto e com essa pronuncia, um erro do repórter, pois Agif nunca existiu, já ZIV sim, e foi a primeira empresa de dublagem junto com a CineLab, no Rio.

 

Ruth Schelske, uma paulista com 19 anos de Rio, de fala doce e tranquila, não tem nada da agitada personagem Mary Tyler Moore do vídeo. Como a maioria dos dubladores, Ruth saiu do radioteatro, mais precisamente da Nacional de São Paulo, onde começou aos oito anos. Ela fazia voz de criança, uma especialidade sua até hoje. (Ruth dublo a mocinha da Família Dó-Ré-Mi e Gasparzinho, o Fantasminha Camarada, dois desenhos animados.) Ela também passou pela TV, onde trabalhou com Manuel de Nóbrega na Praça da Alegria e fez uma das namoradinhas do Santelmo (quem se lembra?), uma das muitas invenções de Chico Anysio (também na velha TV Rio.)

"Acho a Mary Tyler Moore uma figura sensacional e merece a audiência que tem. Só que dublá-la dá um trabalhão, pois ela fala demais e muito rápido. Acho que nos Estados Unidos o filme é feito com som direto."

O Pai queria que ela fosse advogada, mas Ruth estudou línguas e parou no curso científico, para começar a trabalhar. Quem assistia ao Grande Teatro de Sérgio Brito e Fernanda Montenegro, na TV Tupi, talvez se lembre dela e de sua voz.
Ruth gosta muito de seu trabalho, vive disso e tem muitas curiosidade de conhecer as pessoas que dubla. O banquinho dos tempos em que era a Mascote do Rádio, ela usa até hoje nos estúdios de dublagem e nunca dispensa os óculos - pois seus muitos anos de trabalho nos estúdios pouco iluminados, onde ela empresta sua voz a estrelas como Jane Fona, Marilyn Monroe, Susan Saint-James e à brasileira Sandra Barsotti, - deixaram sua vista cansada.

 
 
Afonso Celso, um carioca de 32 anos, começou fazendo dublagem como um bico que lhe permitisse pagar os estudos de Veterinária.

Mas acabou ficando e hoje sua voz é quase uma exigência do público que vibra com o excêntrico e obcecado Columbo, da série Os Detetives.
"Columbo é genial!" - diz ele. "Um anti-herói meio maluco, meio burro, mais que no final acaba mostrando que sabe das coisas.Pena que a série parou de ser filmada, nos Estados Unidos."


Para se transformar vocalmente em Columbo, Afonso modifica um pouco sua voz e a fala rápida do detetive de capa surrada sai na hora, de improviso no estúdio de gravação. Há três anos como Columbo, Afonso já pegou todos os seus trejeitos de falar.
"No princípio, foi muito difícil.Peter Falk fala pra dentro, misturando tudo. Depois descobri que o negócio é falar com naturalidade."


Afonso Celso como radioator, nas novelas da Nacional do Rio, e em 1969 passou para a dublagem, onde já foi Elvis Presley, Alain Delon e outros (Ele continua firme como veterinário. Lá em Bicas, cidadezinha mineira.)


 
 
Nelly Amaral não só se especializou em atrizes italianas - ela é a dubladora oficial de Sofia Loren e Gina Lollobrigida - mas também em colecionadora de maridos - Liz Taylor, por exemplo - e em mulheres mal-humoradas: ela é a empregada do casal MacMillan, da série Os Detetives.

Nelly dubla há 10 anos e, há três, deixou de ser radioatriz.


"Ganhar um pouco mais como dubladora me fez esquecer os 23 anos de Rádio Nacional."
Mas não se assustem: apesar de todo esse tempo de trabalho, ela é moça.
"É que comecei a trabalhar com 12 anos."


Ela já fez tevê em garota, num programa com Floriano Faissal, mas gosta mesmo é de dublar.


"É minha carreira e nela me realizo."


Preocupada com a possibilidade de perder a voz, Nelly está pensando em fazer um seguro e até sugeriu aos colegas um seguro em grupo, ("Sai mais barato"). Seu medo se justifica. Ela já teve uma paralisia nas cordas vocais que a impediu uma semana de trabalhar.


 
 
Ribeiro Santos, ex-auxiliar de escritório, começou no rádio e acabou indo para a TV Tupi como ator de novelas. Mas bastou uma experiência em dublagem, para ele mais uma vez mudar de idéia e de profissão. Dubla o detetive Harry-O, papel vivido pelo ex-Fugitivo David Jansen. No entanto, Ribeiro Santos gosta mesmo é de dirigir dublagem.

Os problemas que um diretor enfrenta durante o trabalho no estúdio, às vezes, são até engraçados. Ribeiro conta, por exemplo, a história de um rapaz que não conseguia dublar um loop em que o ator assobiava para dentro (ele só sabia assobiar para fora.) E, às vezes, é preciso improvisar:


"Se o dublador de um personagem fixo estiver gripado e com a voz rouca, o jeito é aproveitar um movimento de lábios de qualquer fala sem importância, de algum coadjuvante, e encaixar um poxa, como você está gripado, hein?


Nas horas vagas, Harry-O - ou melhor - David Jansen - ou melhor - Ribeiro Santos - gosta de filmar com sua máquina Super-8.Rostos de preferência. E mudos.
Agradecimentos a Ricardo Ribeiro pelo envio desta reportagem.

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